Princípios constitucionais do direito sanitário brasileiro
O Brasil, com pouco mais de 519 anos de existência, passou por diversas fases para construir o Estado Democrático de Direito contemporâneo, sendo desenvolvido através de uma colônia da monarquia portuguesa, passando-se, pois, para uma monarquia independente e, posteriormente, criando-se uma República Federativa em que, em alguns momentos, fora regida por ditatura e, atualmente, graças a diversos movimentos sociais, consolida-se uma República politizada e que agrega, entre seus valores, o voto popular para escolha de seus governantes.
Nesse contexto, tendo o país atravessado diversos percalços para construção e, porque não a própria reconstrução do Estado Democrático de Direito contemporâneo, muito se discute qual seria o papel, a necessidade e a importância do Sistema Único de Saúde, especialmente no que tange à aplicação dos seus princípios norteadores.
Os grandes debates sobre a temática, sem dúvidas, são sobre a possibilidade e alcance das políticas públicas em saúde, bem como qual o efetivo papel do Estado no atendimento da saúde da população em contexto geral, havendo uma confusão generalizada entre os princípios reagentes ao direito da saúde, bem como a divisão sedimentada pelas próprias leis infraconstitucionais que regulamentam, de forma individualizada sobre o Sistema Único de Saúde e sobre os planos e seguros privados da assistência à saúde.
Dentre as discussões inerentes ao tema, sempre vem à tona a capacidade contributiva do paciente e o alcance de gastos do Estado na promoção e defesa da saúde, lembrando-se que, na atualidade, seu conceito estabelece que a “saúde é um bem-estar físico, mental e social” (OMS, 2016, p. 01), impondo asseverados debates, inclusive em âmbito judicial, para saber os limites e obrigações dos Entes Públicos, Entes Particulares e os próprios limites de pedidos dos pacientes que buscam, através da atuação do Poder Judiciário, o atendimento de suas reivindicações particulares.
Independentemente do enfoque que se pretenda dar à discussão do direito da saúde, certo que os princípios constitucionais são reagentes tanto quanto se pensa na esfera pública como obrigação do Estado em atender as necessidades e demandas da população, quanto na própria esfera privada que, através da disponibilização de seguro/plano de saúde, busca a lucratividade nos moldes do próprio capitalismo.
Sem a pretensão do esgotamento da temática proposta, o presente trabalho científico tem por objetivo analisar os princípios constitucionais do direito da saúde, traçando-os com o próprio momento histórico que é vivenciado por diversas reformas que causam asseveradas discussões por impactar diretamente nos direitos conhecidos e há tempos protegidos em nosso ordenamento jurídico.
História do Direito da Saúde no Brasil
No início da colônia Brasil, não havia qualquer preocupação com a saúde da população, sendo tradicionalmente objetivadas curas por curandeiros ou através de crenças religiosas, com a incorporação, nos respectivos tratamentos, de plantas medicinais que advinham da própria cultura indígena que foi mesclada com a tradição trazidas pelos colonizadores pela ausência de médicos em território nacional. A Companhia de Jesus, fundada em 1540 por Inácio de Loyola, foi a primeira instituição a fornecer medicamentos à população.
Comenta Marcus Vinícius Polignano (2015, p. 03) que, até a vinda da família real portuguesa para o Brasil só existiam 4 médicos exercendo a profissão em todo o território nacional, mostrando-se que não havia preocupação com uma política pública de saúde, porquanto, como cediço, os segregados e aventureiros que foram os migrantes colonizadores desta terra.
Até então, O modelo adotado na Colônia era imposto no Brasil, tendo a autoridade médica o exercício dos poderes de polícia e administrativo, responsável pela mesma pratica em Portugal mas em menor número de pessoas.
No entanto, referida situação começou a mudar as denominadas Guerras Napoleônicas, porquanto estabeleceu-se sérios conflitos em que se buscava minar o comércio e as alianças de países europeus com a Inglaterra, aliado ao fato de que, o exército francês, à época, era um poderio bélico avassalador.
Nessa toada, Portugal que mantinha aliança comercial e política com a Inglaterra não poderia atender o chamado de Napoleão Bonaparte que, em 1806, determinava o bloqueio continental e o fechamento dos portos europeus aos navios ingleses e se viu ameaçada de invasão pelas tropas francesas através do Tratado de Fontainebleau, datado de 1807, que objetivava a invasão de Portugal pela Espanha.
Evidentemente que o Brasil, como colônia portuguesa à época, seria uma opção para que a família real portuguesa se visse protegida da invasão de Napoleão Bonaparte, transferindo-se, provisoriamente, o governo português para o Brasil e, para que isto se tornasse factível, necessário que houvesse a infraestrutura mínima para receber os nobres e a família real portuguesa, bem como as tropas inglesas que serviriam de suporte às costas brasileiras.
Assim, também começou a mudar a história do Direito da Saúde no Brasil, porquanto foi trazido médicos de Portugal, mas não só, também foi instituída a primeira faculdade de medicina em território nacional, no Estado da Bahia, denominada inicialmente como Escola de Cirurgia da Bahia, nos idos de 1808, sendo o primeiro cenário em que há uma criação de políticas públicas voltada à saúde da população brasileira.
Importante destacar que na Europa, desde o final do século XVIII havia um movimento sanitário, tendo em vista a alta migração para as cidades como consequência do Iluminismo e da Revolução Industrial.
Prosseguindo-se com a contextualização histórica da saúde, não houve grandes movimentos que se preocupasse com a saúde nos anos subsequentes, tal como se conhece hoje, as medidas eram tomadas como forma de prevenção de grandes epidemias ou como medida de assegurar uma aposentadoria àquelas pessoas que não tinham mais condições de trabalho, como por exemplo a criação da Previdência Social.
No entanto, nos anos 70, como medida necessária para estabelecer a saúde como um direito social consolidado, começou-se a propagar diversas ações que pretendiam, paralelamente, a destituição do regime militar instaurado, bem como a maximização de direitos sociais em prol da própria população brasileira, atos estes conhecidos como “Reforma Sanitária”.
Lembre-se, por oportuno, que a ditatura militar instaurada entre os anos de 1964 a 1985 suprimiu diversos direitos e garantias fundamentais, porque partia de uma premissa autoritária e nacionalista, desprestigiando o debate e as necessidades da população, como um todo.
Dentro do espírito da Constituição Cidadã que foi promulgada em 1988, proveio a idealização dos artigos 6º, 196, 198, Inciso II, da Constituição Federal, buscando assegurar a saúde como um direito fundamental social, mas não só, também trouxe a ideia de universalidade de acesso, integralidade de tratamento e equidade, consubstanciado no que seria o próprio pilar do Sistema Único da Saúde.
Em razão desta contextualização, é possível compreender de forma simplificada a construção do direito da saúde em território nacional, sem perder de vista documentos internacionais que foram impactantes nesta consolidação e diversos relatos históricos que não foram abordados por uma opção epistemológica.
Princípios do direito da saúde
A Constituição Federal fixou a ideia social que rege o direito sanitário brasileiro, pois estabelece no caput do artigo 196 que:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Extrai-se, portanto, do referido artigo os princípios da universalidade e equidade, os quais serão isoladamente tratados, já que, como ressaltando anteriormente, tratam-se dos pilares do Sistema Único de Saúde.
A ideia primordial do princípio da universalidade de acesso é que todos os cidadãos brasileiros, sem qualquer tipo de discriminação, tenham acesso ao serviço de saúde, independentemente de suas condições financeiras. Em outras palavras, tanto o pobre, na acepção do termo, quando aquelas pessoas com riqueza acima da média estabelecida no país teriam direito aos serviços públicos de saúde.
Destaca-se que neste conceito de universalidade estão compreendidos o direito à proteção e recuperação da saúde, direito à prevenção da doença e seu tratamento, devendo ocorrer o acesso aos serviços e ações destinados à recuperação do doente.
Lembre-se que os serviços públicos não estão atrelados apenas as consultas médicas, mas, também, da própria medicação que é fornecida pelo Sistema Único de Saúde e tratamentos correlatos que buscam, em sua essência, o bem-estar físico, mental e social, nos moldes do conceito da OMS.
Aione Maria da Costa Sousa (2014, p. 232) relembra em seu trabalho científico que:
Ademais, algo que deve ser observado é a relação da universalidade e equidade, pois num sistema em que as desigualdades são extremas, não se pode desconsiderar as diversidades, sejam elas regionais ou de condições de vida, de moradia, de renda, de gênero ou de etnia. Não se pode desconsiderar as necessidades e capacidades dos sujeitos, as prioridades políticas na melhoria da qualidade de vida da população mais pobre e em situação de risco e vulnerabilidade, mas isso não significa reduzir a saúde a uma política para os pobres.
Nessa toada, verifica-se que a construção da situação não se restringe apenas a uma necessidade de uma parcela da população, pois, o princípio da universalidade de acesso permite que todos, sem distinção, mesmo pelo viés econômico, possa buscar do Sistema Único de Saúde, inclusive por medidas judiciais que são crescentes na área da saúde, o acesso aos serviços.
Cremos que, por isso, haja uma corrente crescente, inclusive impulsionada por interesses econômicos, que defendam a restrição da universalidade de acesso àquelas pessoas que realmente tenham necessidades e sejam pobres na acepção do termo.
Por outro lado, o princípio da equidade é a visão que busca diminuir a desigualdade, pois, em que pese todos possuírem direito ao acesso a saúde, nem todos os seres humanos são iguais e, por isso, suas necessidades são distintas que variam, desde a forma de tratamento, quanto também outros fatores socioeconômicos relevantes.
É possível traçar um paralelo na própria visão aristotélica, em que o direito deve tratar todos igualmente e os desiguais na medida de sua desigualdade, contudo, certo é que essa analogia se torna, efetivamente, muito simplória à necessidade pontuada na área de políticas públicas voltada à saúde.
Por derradeiro, há que se abordar o princípio da integralidade de atendimento esculpido no art. 198, Inciso II, da Constituição Federal, que, em ressuma, tem o viés de tratamento, quando se pensa nas diversas fases de uma doença, mas, como o conceito de saúde não é apenas a ausência de doenças, sua repercussão e aplicabilidade se torna extensa.
Nada obstante, em primeiro momento podemos entender que a integralidade é a busca do Ente Público na disponibilização dos meios para cura ou para amenizar a dor do paciente, pensando-se, em cuidados paliativos, propriamente dito, com o fornecimento de leitos, médicos especializados, outros profissionais da saúde que são necessários ao tratamento, medicamentos, entre uma infinidade de exemplos que possam ser vislumbrados.
Contudo, não basta a questão de atendimento, a integralidade também busca reabilitar o paciente à vida comum, o mais próximo possível da sua realidade, ainda que haja intervenções medicamentosas, procedimentais ou mesmo através de equipamentos artificiais, sempre em busca da própria qualidade de vida do paciente.
Não obstante, também se traduz, através do princípio da integralidade, políticas públicas e atuações de diversos setores para buscar a saúde preventiva, com planos de ação para que o haja a conscientização do cidadão em determinada doença e orientação de como preveni-la.
Nesta linha, não basta curar a doença ou reabilitar a qualidade de vida, também é de suma importância evitá-las, com políticas públicas voltadas a esta ação.
Diante deste panorama, podemos verificar os pilares que sustentam as leis voltadas a saúde e que dão sustentáculo ao Sistema Único de Saúde.
Princípios do direito da saúde
A construção deste artigo trouxe uma revisão sobre os princípios reagentes, em âmbito constitucional, aplicados ao direito sanitário brasileiro, sendo que, constantemente, são invocados em ações judiciais contra entes públicos e privados, já que, independentemente de condições, certo é que a população, pelo arquétipo constitucional vigente, tem ao seu favor os princípios da universalidade, da integralidade e da equidade.
No entanto, fica claro que, ao aplicar os princípios constitucionais se torna um sustentáculo as legislações infraconstitucionais que regulamentam o Sistema Único de Saúde e de Planos/Seguros Saúde, devendo ser levada a efeito para a aplicação das especificidades trazidas com o direito da saúde na esfera individual ou em questões coletivas, quando se pensa, pontualmente, em políticas públicas.
Conclusão
OMS – Organização Mundial de Saúde, Conceito de Saúde em 2016. Disponível em: <http://cemi.com.pt/2016/03/04/conceito-de-saude-segundo-oms-who/>. Acesso em: 02 nov. 2017.
SOUSA, Aione Maria da Costa. Universalidade da saúde no Brasil e as contradições da sua negação como direito de todos. Rev. katálysis, Florianópolis, v. 17, n. 2, p. 227-234, Dec. 2014. Disponibilizado em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci _arttext&pid=S1414-49802014000200227&lng=en&nrm=iso. Ou http://dx.doi.org/10.1590/S1414-49802014000200008. Acesso em: 18 jul. 2019.
POLIGNANO, Marcus Vinícius. História das políticas de saúde no Brasil: Uma pequena revisão. Disponibilizado em http://www.saude.mt.gov.br/ces/arquivo/2165/livros. Publicado em 2015, aproximadamente. Acesso em 17/07/2019