A desconexão digital no direito do trabalho como importante ferramenta para o direito da saúde mental
Introdução
Com a internet e, principalmente, com a era dos aplicativos em smartphonesvivenciada no Século XXI, proveio mudanças estruturais na sociedade contemporânea, alterando-se hábitos, relacionamentos, profissões e o próprio mercado de trabalho impulsionando-se, cada vez mais, a utilização da tecnologia nos comezinhos da vida cotidiana.
Consequentemente, também houve alterações substanciais na relação humana e, em especial, no mercado de trabalho, em que se utiliza os aplicativos em diversos meios de comércio eletrônico com a substituição da mão de obra, próprias das terceira e quarta etapas da revolução industrial vivenciada no século XXI.
Grande parte desse impulso se dá, sem dúvidas, por intermédio do lançamento e desenvolvimento do aplicativo WhatsApp que mudou, definitivamente, as estruturas de comunicação mundial, porquanto, através dele, é possível estabelecer conexão instantânea entre duas ou mais pessoas, ligações de vídeos e de telefonia, bastando, para tanto, que haja conexão com a internet.
Com essa instantaneidade, percebe-se que as pessoas, independentemente da idade, estão cada vez mais conectadas aos meios empresariais, não havendo a desconexão ao ambiente de trabalho, o que impacta na qualidade de vida e, principalmente, na sua saúde destes indivíduos.
Diante desse quadro, é possível falar em “direito à desconexão” como ferramenta para atingir à saúde do trabalhador? A desconexão somente deve ser pensada em uma relação jurídica de trabalho? O direito tem como limitar a autonomia de vontade do indivíduo na utilização dos aplicativos seja em caráter laboral, seja em caráter pessoal?
Nessa linha, o presente artigo se aprofundará, sem a pretensão de esgotamento do tema, trazendo os principais aspectos correlacionando o direito social à saúde e a realidade da era dos aplicativos na contemporaneidade, traçando-se a metodologia dedutiva, amparada em referenciais teóricos publicados em meios digitais e impressos.
Criado por Brian Acton e Jan Koum em 2008 o aplicativo WhatsApp se tornou um fenômeno mundial porquanto se propôs conectar pessoas, através de mensagens instantâneas entre o emissor e seus receptores através do próprio aplicativo instalado no aparelho celular (Kleina, 2018, p. 01), agregando as recentes tecnologias que permitiam a conexão dos smartphones à internet.
O diferencial, na época de sua criação, era que toda a logística não dependia da telefonia celular, bastando que o aparelho tivesse conexão com a internet, e, com o passar dos anos, eles foram inovando, com aparelhos cada vez mais potentes e com tecnologia de ponta para abarcar computadores e a modernização do aplicativo ao permitir que as mensagens instantâneas fossem criadas através de grupos, possibilidade de chamadas de telefonia e vídeos, encaminhar documentos, fotos, arquivos dos mais diversos imagináveis.
No mais, a empresa que administra o aplicativo garante sua segurança daprivacidade dos seus utilizadores pelo sistema “ponta a ponta”, descrito ao iniciar uma mensagem, em que, em síntese, criptografa a mensagem a ponto de que somente os envolvidos tenham acesso ao material, mantendo-se a privacidade dentro daquelas pessoas destinatárias (O Dia, 2019, p.01).
No mundo business tornou-se uma ferramenta necessária para aproximar a relação de trabalho, quando pensamos em prestadores de serviços e empregados (com ou sem vínculo de trabalho); no próprio comércio em geral não é diferente, já que é possível verificar a data de envio de mensagem, se a pessoa leu ou não o conteúdo enviado, trazendo um aspecto de segurança aos envolvidos.
Contudo, referida situação também criou imbróglios na relação de trabalho, porquanto a ferramenta tecnológica pode interferir na desconexão necessária do trabalhador (seja empregado, empresário ou autônomo) ao ambiente de trabalho impondo-se prejuízo a sua saúde.
Jornada de trabalho
A jornada de trabalho na Europa, por volta do século XVIII e XIX, eram de 12 a 16 horas, o que significava pouco tempo para as demais preocupações salutares à vida humana, tais como o próprio desenvolvimento familiar, descanso e demais atividades rotineiras.
Referida preocupação começou a ser alterada quando, no ano de 1848, eclodiam revoluções na Europa, tais como Movimento Cartista, Manifesto Comunista e a própria Revolução Industrial, houve uma grande preocupação com diversos pontos da dignidade humana (Delgado, 2017, p. 101).
Nessa toada, na Inglaterra, em 1849, surge a primeira legislação que limitada a jornada de trabalho em 10 horas diárias (Delgado, 2017, p. 101), como uma forma de prestigiar as próprias necessidades humanas que não estão restritas apenas ao direito do trabalho.
Diante disso, em meio aos conflitos crescentes na Europa e com a deflagração da Primeira Grande Guerra, em seu final, foi instituído a Organização Mundial do Trabalho, em que, em sua primeira convenção, prestigiou a jornada de trabalho em 1919, limitada a 10 horas diárias e 48 horas semanais, o que significa dizer que, o trabalhador deverá ficar à disposição do seu empregador neste período, variando de país para país seus regramentos e horários previamente estabelecidos.
Como bem pondera Maurício Godinho Delgado, a Jornada de Trabalho não se confunde com o horário de trabalho, porquanto se tratar de um conceito mais amplo, haja vista que perfazno:
(…) lapso temporal da jornada deve incluir-se, também, não só o tempo trabalhado e à disposição, mas também o tempo tido como contratual estritamente por imposição legal (caso dos intervalos remunerados) — embora neste último lapso o empregado não labore nem sequer fique à disposição empresarial. (p. 978)
Nesse contexto, evidencia-se que a jornada de trabalho limitada a 10 horas por dia, respeitando-se o intervalo de interjornadade, no mínimo, de 11 horas foi adotadapela Constituição Federal brasileira, em seu artigo 7º XIII, assegurando o caráter salutar, conquistados nos idos das primeiras etapas das Revoluções Industriais do Século XVIII.
Diante disso, parece-nos uníssono a corrente de que a jornada de trabalho limitada pela Constituição Federal tem justamente a função de assegurar a preservação da saúde adotando adotando-se o conceito atual de saúde que é o “bem-estar físico, mental e social”, conforme divulgado pela Organização Mundial de Saúde (2016, p. 01).
Contudo, a inquietação científica se dá quando, através da própria tecnologia, os trabalhadores não se desconectam de seu trabalho, mantendo-se presente em seus ambientes de trabalho, ainda que de forma virtual. Nestes casos, como devem ser tratados os indivíduos, considerando a problemática que pode ocasionar em sua respectiva saúde.
A desconexão
É cediço que hoje se vive na “Era Hashtags” em que há conexão imediata e constante com tudo e com todos. Na contemporaneidade se estuda os benefícios e maléficos à saúde humana em relação a conexão constante aos meios digitais e seus prejuízos efetivos ao bem-estar físico, mental e social.
Jorge Luiz Solto Maior, nos idos de 2003, já defendia que:
Este novo mundo do trabalho contraditório traz para o jurista o desafio de encontrar estas respostas, que se destinam, também, à preservação da saúde da sociedade. Nesta medida é que o direito a se desconectar do trabalho, como dito inicialmente, não é um direito individual do trabalhador, mas da sociedade e da própria família. (2003, p. 311).
No entanto, a manutenção da conexão ao ambiente de trabalho, seja por trabalhador empregado regular em razão do alto índice de desemprego no Brasil, seja por autônomo se dá em razão pelo alto índice de emprego e de competitividade no mercado de trabalho como um todo, mostra-se que a prática é corriqueira e que as pessoas nem se dão conta disso.
Aquela velha máxima que diz “quem não é visto, não é lembrado” se adequa ao meio tecnológico com muita eficácia, porquanto muitas das vezes, clientes acionam os profissionais liberais, sem se prender aos horários comerciais, muito menos se importando com a própria vida privada destes.
Agrava-se a situação quando se depara que a desconexão pode repercutir no desemprego imediato, lembrando-se que no Brasil vigora o direito potestativo do empregador, justificando a teoria do risco, inclusive. Lembre-se que, através deste direito, o empregador pode desligar o empregado imotivadamente, bastando, apenas, que pague as verbas rescisórias estabelecidas pela legislação vigente.
No entanto, apenas monetizar o tempo do obreiro, ainda que se reconheça as horas extraordinárias quando possível cobrar (falando-se em relação aos empregados cujo regime segue-se a CLT)não basta para trazer a preservação ao direito da saúde e nem sempre o lado financeiro compensará os diversos prejuízos, especialmente os sociais que esta pessoa estará sujeita.
É tão impactante a temática que a Comissãoda Advocacia Autônoma/Sociedade Individual da Ordem dos Advogados do Brasil – Subseção do Jabaquara, capitaneada pelo seu Presidente Dr. Douglas Felix Fragoso e demais membros,editou uma cartilha em agosto de 2019 aos advogados que, sem vínculos de emprego, devem se policiar e se desligarem dos seus ambientes de trabalho para os preservar sua saúde.
Portanto, torna-se evidente que a desconexão deve ser pensada em toda a relação de trabalho, devendo haver o desligamento tecnológico do ambiente de trabalho para atingir o tríplice necessário para atingir a saúde plena humana.
Por fim, não há como perder de vista que, em relações jurídicas de emprego, há como se limitar a autonomia da vontade do empregado para interagir com seus empregadores através do ambiente digital. Todavia, essa premissa não é a mesma em relação aos profissionais individuais, devendo, para tanto, reforçar campanhas de conscientização como a capitaneada pela OAB do Jabaquara a fim de que profissionais entendam a importância do conceito de saúde na realidade Hashtags.
Conclusão
Diante disso, torna-se necessário estreitar estudos a respeito da desconexão, não apenas no direito do trabalho, como em outros ramos de direito, como meio necessário para preservar a saúde dos indivíduos, sendo certo que, referidos estudos podem ser ramificados para diversas áreas do direito.
Verifica-se que foi possível resolver as perguntas inicialmente tratadas no introdutório, demonstrando que a desconexão está atrelada à autonomia da vontade, quando depender exclusivamente do trabalhador (autônomo ou empregado) em não acessar seus ambientes de trabalho.
Por fim, também foi possível verificar que há prevalece a monetização da saúde do trabalhador que, fora do ambiente de trabalho, é acionado através dos meios tecnológicos, o que poderá ser danoso à sua saúde, considerando os aspectos direcionados pela Organização Mundial do Trabalho.
REFERENCIAIS
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KLEINA,Nilton. – A história do WhatsApp, o rei dos mensageiros [vídeos]. Publicado em TECNOMUNDO no dia 23 jan. 2018. Disponibilidade https://www.tecmundo.com.br/dispositivos-moveis/125894-historia-whatsapp-rei-mensageiros-video.htm. Acesso em: 02 mar. 2019.
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